ATIVIDADE 1 - JOR - NARRATIVAS, GÊNEROS E FORMATOS JORNALÍSTICOS - 53_2024
Leia o texto a seguir:
O Povo do Meio
Esses brasileiros não votam, são analfabetos e oficialmente não existem. À margem do país, estão jurados de morte
04/10/2004
Raimundo Nonato da Silva não sabe quem é Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os dois Silvas, o presidente do Brasil e o brasileiro sem presidente, há um vasto mundo no qual se chamar Raimundo nem é rima nem é solução. Ele vive num país desconhecido do próprio Brasil, onde a maioria dos homens atende por Raimundo. Sua república fica no coração da Amazônia e pertence a uma região cujo nome parece ter saído do universo mitológico de J.R.R.Tolkien: Terra do Meio. É um país invisível porque 99% dos habitantes não têm documentos. Oficialmente, os Raimundos e Raimundas não existem. Mas estão lá, insistem em existir, rasos de letras, plenos de paradoxos. São analfabetos ou, como eles dizem, “cegos”. Nunca votaram porque fantasmas só se tornam eleitores em currais de fins de mundo. E eles vivem um pouco mais além do fim do mundo. O Povo do Meio pode desaparecer antes que o país oficial se aperceba dele. Como a floresta em que vive, e com a qual se confunde, está ameaçado de extinção.
Descendentes de soldados da borracha, nordestinos levados para os confins da selva pelo governo de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial, por lá ficaram e multiplicaram-se formando uma só família com menos de duzentas pessoas entrelaçadas em intrincada teia de parentescos. Vivem como os índios viviam antes de terem contato com o que se chama de civilização. Caçadores e coletores, comem o que a floresta lhes dá. E ela lhes dá muito. Castanha no inverno, caça, pesca e óleo das árvores de copaíba e andiroba o ano todo.
Assim seguiriam com a vida em seu país sem moeda, não fosse terem sido descobertos pelos homens que são chamados de grileiros. Esses predadores da floresta são velhos conhecidos da Amazônia. Enviam seus pistoleiros carregados de armas e licença para matar. Empunham títulos de terra forjados numa rede de corrupção que começa nos cartórios e chafurda em intermináveis caminhos da Justiça. Apregoam-se donos de milhares, milhões de hectares de floresta. Poucos aparecem como o que são. A maioria vive nas grandes cidades do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, usam testas de ferro para cometer seus crimes enquanto sentam-se com as unhas polidas para assistir a concertos de música clássica.
Como no tempo de Pedro Álvares Cabral, os representantes dos grileiros ofereceram primeiro espelhinhos aos Raimundos: no caso, um punhado de reais para deixar a floresta. Depois, exibiram o cano da espingarda. Hoje, o Povo do Meio está jurado de morte. Só o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida, um dos poucos rostos conhecidos, disputa na Justiça uma área que pode chegar a 7 milhões de hectares – um território com o tamanho da Holanda e da Bélgica somadas. Se conseguir, vai obrigar todo o Povo do Meio a abandonar suas terras.
“Só me arrancam daqui com uma arma na cabeça”, diz Raimundo Belmiro, 39 anos, nove filhos. Raimundo, um dos líderes da comunidade, é um homem quieto, com a coragem de quem faz o que o caráter manda apesar do medo. “Um dia eu voltei do mato e os homens de fora estavam na minha casa. Depois vieram outros e não pararam mais de chegar. Me ofereceram 10 mil reais pela minha terra. Eu disse não. Eles então começaram a cercar meu lugar por todos os lados. Passam no rio em rabetas cheias de pistoleiros armados. São armas garantidas, de repetição, não como a minha espingarda de caça que tem 23 anos. Querem me botar medo. E conseguem. Sou um homem jurado de morte.”
Raimundo e sua família acordaram naquela manhã sem nada para comer. Cada um embrenhou-se num ponto cardeal da mata em busca de alimento. Antes do meio-dia, Fernando, de treze anos, caçou uma anta de quase trezentos quilos e Francisco, de catorze, trouxe duas queixadas. Raimundo explica: “A floresta é assim, rica de um tudo. Por isso tô marcado pra morrer, mas fico”.
Você leu um trecho de uma reportagem da jornalista Eliane Brum. As reportagens são textos mais longos do que as notícias, que aprofundam um determinado tema, levando ao público informações, contextualizações e nuances que muitas vezes não são abordados nas coberturas factuais do dia a dia. Para produzir uma reportagem, o jornalista geralmente dedica um bom tempo ao trabalho de pesquisa, realiza várias entrevistas e tenta abordar vários aspectos sobre um mesmo tema, para dar conta da complexidade do fato narrado. Os personagens, as informações, o contexto e o ambiente subsidiam o jornalista com informações preciosas que vão alimentar o texto.