ATIVIDADE 1 - IMERSÃO PROFISSIONAL: SOCIEDADE, PSIQUISMO E VIOLÊNCIA NO CONTEXTO BRASILEIRO - 54_2024
Olá alunos, vocês já assistiram ao filme laranja mecânica?
Fonte: Adorocinema, 2024.
O filme, passa-se no futuro, e conta a história do agressivo Alex (Malcolm McDowell), chefe de um grupo de jovens delinquentes que cometem homicídios, roubos e estupros, o qual é capturado pela polícia. Detido, a ele é oferecida a chance de participar de um programa que pode diminuir sua sentença. Alex se torna um sujeito de testes projetados para inibir os impulsos destrutivos humanos, mas acaba incapaz de enfrentar a violência que o rodeia.
Após a leitura breve da sinopse, leia o trecho abaixo, extraído do artigo
Reality game: violência contemporânea e desnaturação da linguagem.
Em Laranja mecânica há uma forma de violência lúdica à qual cabe denominar reality game, híbrido de reality show e videogame. A graça toda do reality game, cuja tradução é brincadeira de verdade, é brincar duplamente com a ambiguidade entre a coisa e sua representação. O ataque, a violência, é uma brincadeira, mas é de verdade. A vítima escolhida é um símbolo, mas é a coisa simbolizada.
No filme, os adolescentes batizam sua brincadeira de “ultraviolência”. Em que consiste a brincadeira? Primeiro, tomam o seu leite aditivado. Quando estão no ponto, saem pela noite para brincar de atacar as pessoas. Há um critério na escolha das vítimas: são pessoas que representam, que simbolizam, uma sociedade e valores em vias de desaparecer. Mas ao mesmo tempo são de verdade: gente de carne e osso que vive e pratica em seu dia-a-dia esses valores.
Estamos a léguas da situação clássica em que uma criança usa sua massinha para criar peões que representam algum personagem odiado, para depois destruí-los, expressando assim a sua violência. Não adiantaria a Alex queimar a partitura da música tradicional irlandesa. É preciso atacar a pessoa que a está cantando. A representação só vale para o psiquismo se ela também for a própria coisa. Aqui o peão do jogo tem que ser de carne e osso. Embora a representação tenha, tradicionalmente, a função de estar no lugar da realidade, no mundo contemporâneo, em que a representação é frágil, a realidade é chamada a dar sustentação à representação.
O que aconteceu com o brincar? Retomemos uma das cenas mais chocantes do filme. Percebemos que Alex esmaga a cabeça da dona do spa, tal como a criança esmaga a massinha que representa a mãe odiada. A criança sabe que a massinha não é a mãe. Ela é capaz de fazer o trabalho do negativo, conceito de Green (1991), que descreve a capacidade psíquica de sustentar a não-percepção do objeto, fazendo o luto por sua ausência. Neste espaço vazio nasce a representação daquilo que não está, presentificando a ausência do objeto para o psiquismo. Ao criar uma mãe de massinha, sabe perfeitamente que está destruindo um símbolo, e não a própria coisa.
Há situações em que este conhecimento se perde. Hanna Segal (1957) criou o conceito de equação simbólica para descrever a destruição da capacidade de discriminar o símbolo da coisa em pacientes esquizofrênicos. Ela observou que, nesses pacientes, a distância entre o símbolo e a coisa se esfuma. O símbolo é tratado como a própria coisa simbolizada. Um de seus pacientes parou de tocar violino porque não podia se masturbar em público. Em suma, o esquizofrênico confunde o símbolo com a coisa simbolizada.
Alex não é esquizofrênico. Ele não trata a representação como a própria coisa. Acontece algo diferente da equação simbólica: a coisa é que é tratada como símbolo, como representação. Não é que ele não consiga usar a massinha para brincar; não é que ele não simbolize. Tanto simboliza que identifica perfeitamente os símbolos de uma civilização em declínio. É que ele não acredita mais na capacidade da massinha representar a mãe, em sua ausência. A capacidade de simbolização é frágil: se quiser expressar o seu ódio, é obrigado a atacar a mãe em carne e osso. É como se uma criança, não confiando na capacidade do ursinho de representar a mãe em sua ausência, precisasse de um pedaço de seu corpo de verdade. Como já disse um filósofo, o conceito de cão não late. Hoje, para o conceito de cão ter força e ser significativo, deve, de alguma forma, latir.
Voltando para a psicopatologia individual, o neurótico conseguiu criar um símbolo para a mãe-ausente e por isso conta com uma rede de representações. O não-neurótico não fez o luto pela perda do objeto. Não é capaz de sustentar psiquicamente o negativo, a “ausência” da coisa; “a linguagem não veio substituir a coisa. O símbolo não lhe diz nada, se não estiver minimamente acompanhado pela coisa simbolizada. Assim como Quinn não confia na capacidade das tintas de representarem as fezes e expressa essa descrença pintando com as próprias fezes, Alex (e tantos outros) não confia que a massinha possa representar o velho e suas canções tradicionais. Ao invejar o velho, tem que esmagar o próprio velho.
Quando a palavra estupro é substituída por “entra e sai” está em curso o processo de desnaturação da linguagem. A ideia de desnaturação do laço simbólico foi desenvolvida em outro texto (Minerbo, 2000). Ao estudar a lógica da corrupção, sugeri que a corrupção corrompe – rompe – o laço simbólico que une a palavra juiz a uma série de significados como justiça, transgressão, culpa, pena etc. Como consequência, a palavra justiça acaba por não ter mais o lastro necessário para constituir subjetividade. Houve um esvaziamento semântico. Isso afeta nossa sensibilidade: a toga não evoca mais em nós sentimentos como confiança e respeito.
(...)
Quando Alex usa outra palavra para denominar a cena de penetração sexual violenta, ele desfaz o laço simbólico que unia o significante estupro ao significado crime sexual. A cena continua existindo, mas a palavra “entra e sai” a reveste de um novo significado. Isto significa que passamos a sentir coisas diferentes diante da mesma cena. A palavra “estupro” nos introduz no campo da ética. Desperta em nós uma sensibilidade relacionada à violência e ao crime; evoca e produz sentimentos de repúdio moral e de horror. Já a palavra “entra e sai” evoca uma situação lúdica, de parque de diversões. Ela nos introduz no campo do lazer, e não da ética. A palavra “entra e sai” evoca em nós movimentos do corpo numa gangorra, ou num carrossel em que os cavalinhos “sobem e descem”.
Repito o que me parece essencial nesse processo: esvaziamento semântico alterou nossa sensibilidade; a violência sexual passa a ser vivida como algo inocente e divertido. O conceito de estupro não existe mais; a ideia de violência sexual se perdeu. A partir desse ponto, um jovem pode forçar uma mulher a manter relações sexuais, e tudo não passará de uma brincadeira (de verdade). Vemos agora claramente a relação entre a alteração na nossa sensibilidade devida à desnaturação da linguagem e a possibilidade de haver o reality game.
MINERBO, Marion. Reality game: violência contemporânea e desnaturação da linguagem. In. Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007. ISSN 0101-3106. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0101-31062007000100016&script=sci_arttext. Acesso em: 18 set. 2024.
A partir da sinopse do filme, os conhecimentos adquiridos em aula e do texto acima, responda às seguintes questões:
Como o filme "Laranja Mecânica" mostra a dificuldade da sociedade atual em usar símbolos para representar a realidade, e como isso se conecta com a violência que aparece como uma forma de diversão no filme?
De que maneira o 'entra e sai' mencionado por Alex no filme reflete a 'desnaturação da linguagem' e como isso pode contribuir para a “desensibilização” em relação à violência?
Orientações!
1º Assista ao vídeo explicativo gravado pela professora, disponível no fórum
2º Leia novamente o que escreveu, amplie as ideias e conclua sua atividade
3º Realize uma cuidadosa correção ortográfica em seu texto antes de enviá-lo;
Bons Estudos!!